"A mão do Senhor se voltou contra mim": a amarga experiência de Noemi

 

Sempre que tenho a oportunidade de ler o livro de Rute, o meu coração estremece diante das profundas verdades que podemos extrair desses breves quatro capítulos. É extasiante ver como a mão de Deus estava operando o tempo todo, como diz John Piper, “Deus continua operando mesmo nos piores tempos. Ele opera fazendo mil coisas que ninguém enxerga, senão ele mesmo.”¹

 

Todavia, estas são verdades claras para nós porque estamos do lado de fora da história. Noemi e Rute nem sequer imaginavam o que estava prestes a acontecer, ao contrário, o que viam era somente tragédia após tragédia. Primeiramente, observamos o período em que estavam vivendo - o dos juízes - um tempo obscuro da história do povo de Deus, no qual “não havia rei em Israel; porém cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos.” (Jz 21:25). O povo estava diante de um declínio moral e espiritual, não havia ordem ou direção, os princípios divinos haviam se perdido, e agora cada um era rei de seu coração. Não bastasse tudo isso, uma terrível fome assolou Belém, a casa do pão, e Elimeleque toma a decisão de ir para Moabe em busca de mantimento,  desviando-se assim das prescrições divinas. O que seria aparentemente uma mudança passageira durou cerca de uma década, e Noemi viu ali seus filhos se casando com mulheres estrangeiras, o que era explicitamente proibido na lei de seu Deus. Posteriormente, ela sofreu a perda do seu marido e também a perda dos seus dois filhos.

 

É fácil julgar a atitude de Noemi frente a seu sofrimento, quando ela decide que Deus estava contra ela e que agora sua vida se tornara amarga, porém, não podemos perder de vista a profunda dor e confusão que se passava em sua mente, o que não conseguimos medir ou colocar em palavras. Só quem perdeu alguém entende a dor do luto. E como se não bastasse isso, estamos falando de uma época em que a mulher só tinha valor ou certos direitos quando à sombra de uma figura masculina. Noemi não estava perdendo seu marido e filhos apenas, estava perdendo também seu lugar na sociedade, sua segurança de ter uma boa qualidade de vida. Em amargura, ela diz: “a mão do Senhor se voltou contra mim” (Rt 1:13), pois tudo o que conseguia enxergar era dor, que ao invés de diminuir, só aumentava com o passar dos anos em sua trajetória.

 

É nesse cenário sombrio que sobrevém aquela famosa frase de Rute, muito citada nos casamentos e votos de amor (Rt 1:16-17). Rute estava determinada a ir com sua sogra, a despeito de tudo o que poderia lhe ocorrer, mesmo quando não restava nenhuma centelha de esperança, mesmo que diante da amargura de Noemi. Gosto da perspectiva de Emilio Garofalo quando diz:

 

Perceba que este passo não é conveniente ou fácil para Rute. É algo que nasce de um coração que encontrou a beleza e o poder do Deus verdadeiro. Rute tem mais interesse e confiança no Deus de Israel do que Noemi. ¹

 

Rute contemplou a beleza e poder desse Deus que ouvira falar de tal modo que não haveria mais sentido algum permanecer longe Dele. Ela decide não apenas ir com Noemi, mas estar aliançada com seu Deus, e ainda que Noemi morresse, ela não iria a lugar algum, permaneceria ali com o seu povo. Vemos que dentro deste cenário difícil da vida de Noemi, Deus estava estendendo sua graça a uma gentia e a introduzindo na grande história da Redenção, além de estar a usando para cuidar da sua serva Noemi. Mas, claro que Noemi não conseguia enxergar isso.

 

Quando decidimos que Deus está contra nós, geralmente exageramos nossa falta de esperança. Tornamo-nos tão amargos que não enxergamos os raios de luz que surgem de trás das nuvens. Foi Deus quem deu fim à falta de comida e abriu o caminho de volta para casa (1.6). Foi Deus quem preservou um parente que continuasse a linhagem de Noemi (2.20). E foi Deus quem constrangeu Rute a permanecer junto de Noemi. Mas Noemi está tão amargurada pela dura providência de Deus que não enxerga a misericórdia divina trabalhando em sua vida. ²

 

Quais têm sido as suas reações frente ao sofrimento humano? Todas estamos sujeitas a passar pela escassez, pela dor ou pelo luto, são coisas que não estão distantes da nossa realidade. A questão não é se iremos passar pelo sofrimento, mas o que vamos fazer com ele. Se Noemi conseguisse enxergar o belo projeto de Deus em sua vida, se pudesse ouvir ao menos um terço do que a providência estava arquitetando para a sua história, ah, se ela soubesse o que estaria para vir, imagino que a sua atitude seria outra, ela não se chamaria de amarga, nem duvidaria da bondade e misericórdia do seu Deus! Mas aí vem o desafio, que é o mesmo da nossa caminhada também: não sabemos! E precisamos crer, apesar disso.

 

Há uma canção que, desde a primeira vez que ouvi, aquece o meu coração, e sei que tem aquecido milhares de outros também.

 

És fiel em todo tempo

Em todo tempo tu és tão, tão bom

Com todo fôlego que tenho

Eu cantarei da bondade de Deus. ³

 

Não teve um momento sequer que o Senhor deixou de ser bondoso conosco, ao contrário, sua bondade e misericórdia nos perseguem todos os dias (Sl 23:6). Essas são verdades profundas que precisamos guardar nos recônditos do nosso coração, a fim de não esquecermos, ainda que nos piores momentos. Se pudéssemos ver tudo o que a providência está operando em nós, ah, se pudéssemos! Reclamaríamos menos, agradeceríamos mais, O louvaríamos mais! Bradaríamos um alto e estrondoso: Deus sabe o que está fazendo, Ele sempre tem o melhor!

 

Precisamos crer sem ver, confiar sem entender, amar sem sentir… acredito que essa é a maturidade que o Senhor deseja trazer para nós como cristãos. Por que louvar a Ele quando diante do milagre, exaltar a bondade Dele quando vemos o seu agir extraordinário ou quando diante de nossas orações respondidas, isso é fácil! Mas continuar O louvando e crendo em sua bondade a despeito de tudo, isso é fé, isso é maturidade espiritual, que é desenvolvida em nós através do agir do seu Espírito, muitas vezes em meio às adversidades.

 

Que o Senhor nos ensine através da linda história de Rute a estarmos no lugar que Ele deseja, a sermos o que Ele espera, a não nos desviarmos nem por um momento do único que traz sentido para as nossas vidas. Ele, que ao contrário de nós, é onisciente e conhece todas as coisas, pois tem o domínio de tudo em suas mãos. Nossa confiança reside não em sabermos o que nos reserva no próximo capítulo, mas em conhecermos Aquele que tem a caneta da nossa história. Podemos assim O glorificar, mesmo que diante das páginas mais obscuras, pois Ele sempre sabe o que está fazendo!

 

 

 Thayse Fernandes

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¹ NETO, Emilio Garofalo. As boas novas em Rute: Redenção nos campos do Senhor. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

² PIPER, John. Doce e amarga providência: sexo, raça e soberania de Deus. Editora Vox Litteris.

³ Bondade de Deus, de Isaías Saad.

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